Texto histórico de Lupicínio Rodrigues
Poucos textos conseguem atravessar gerações mantendo intacta a força de sua mensagem. “Por que sou gremista”, de Lupicínio Rodrigues, é um deles. Mais do que uma simples explicação sobre preferência clubística, o texto é um documento histórico, social e cultural de Porto Alegre — e também uma das mais sinceras declarações de amor já feitas ao Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense.
Que Lupicínio Rodrigues foi o compositor do hino do Grêmio, isso é amplamente conhecido. Mas o que muitas vezes passa despercebido é o peso simbólico dessa obra. O hino não é apenas uma canção: é um compromisso. É devoção. É identidade. Versos como “até a pé nós iremos” transformaram-se, ao longo do tempo, em algo maior do que palavras — viraram juramento coletivo. Para o torcedor gremista, é quase uma La Marseillaise tricolor, entoada não para lembrar o passado, mas para empurrar o clube rumo à glória.
O contexto que explica tudo
Em uma de suas crônicas, reunidas posteriormente em livros, Lupicínio narra um episódio ocorrido em um domingo, durante um churrasco na Sociedade Satélite Prontidão, local de encontro da elite negra de Porto Alegre. Em meio à música, à comida e à cerveja, surgiu a pergunta que muitos já haviam feito — e ainda fazem:
Como um homem do povo, de origem humilde, podia ser tão fanático pelo Grêmio?
A resposta não veio apenas da emoção, mas da memória histórica, ajudada por Orlando Ferreira da Silva, funcionário da Biblioteca Pública e testemunha viva de uma época marcada por exclusões, resistências e escolhas que moldariam o futebol gaúcho.
O Rio-Grandense e a exclusão na Liga
No início do século XX, um grupo de jovens negros — chamados à época de “mulatinhos” — sonhava com algo simples e revolucionário: formar um clube de futebol e participar da Liga. Entre eles estavam figuras fundamentais da história social porto-alegrense, como Júlio Silveira, Francisco Rodrigues (pai de Lupicínio), Otacílio Conceição, Orlando Ferreira da Silva, José Gomes, entre outros.
O clube nasceu com o nome Rio-Grandense. Houve esforço para tudo: estatuto, uniforme, cores, organização. O objetivo era claro — disputar oficialmente o futebol da cidade, então dominado por clubes tradicionais como Fuss-Ball (o Grêmio), Ruy Barbosa e Internacional.
Mas quando o Rio-Grandense solicitou ingresso na Liga, veio o golpe: o pedido foi recusado. E o voto decisivo contra a entrada do clube foi justamente do Internacional, equipe que mais tarde se autoproclamaria “Clube do Povo”.
A ferida estava aberta.
A escolha pelo Grêmio
A rejeição marcou profundamente aqueles jovens. Como reação, decidiram torcer contra o Internacional. E, naturalmente, escolheram seu maior rival: o Grêmio.
A partir dali, a relação não foi apenas esportiva — foi simbólica. Pais passaram a orientar filhos, criando uma tradição familiar de oposição ao clube que os havia excluído. Mais tarde, surgiu a Liga dos Canela Preta, espaço onde clubes formados por atletas negros puderam existir e competir.
O “Escrete Branco” e a mudança forçada
O sucesso dos Canela Preta chamou atenção. Em jogos amistosos, derrotaram adversários tradicionais, inclusive o Ruy Barbosa. Em seguida, enfrentaram o Grêmio, que entrou em campo com o rótulo de “Escrete Branco”.
O talento dos jogadores negros era inegável. Isso forçou clubes tradicionais a reverem seus estatutos para não perderem espaço técnico. Curiosamente, o Grêmio foi o último a aceitar atletas negros, não por simples resistência ideológica, mas por uma cláusula estatutária: o clube poderia perder seu campo, doado por imigrantes alemães, caso aceitasse pessoas de cor.
Com o tempo, essa cláusula foi abolida. O futebol mudou. A sociedade avançou — ainda que lentamente.
Lupicínio, o Grêmio e a história
Já em outro momento de sua vida, Lupicínio Rodrigues alcançou algo profundamente simbólico: tornou-se sócio-honorário do Grêmio. O mesmo clube que, décadas antes, fazia parte de um contexto excludente, agora eternizava sua voz por meio do hino mais emblemático do futebol brasileiro.
“Por que sou gremista” não é um texto contra alguém. É um texto a favor da memória. Ele nos obriga a olhar o passado sem maquiagem, entendendo que o Grêmio — como qualquer instituição centenária — é resultado de seu tempo, de erros, acertos e transformações.
E talvez seja justamente por isso que o texto de Lupicínio segue tão atual: porque amar o Grêmio também é entender sua história por inteiro.
📚 Leitura recomendada no Grêmio copero Histórico:
📜 Atualização Histórica
Este artigo é uma atualização de um texto originalmente publicado no antigo Grêmio Copero, preservando o espírito e a memória gremista daquele período.